in Revista de psicología (Santiago)
“Não pode ser abuso... eu sou a mãe”: ofensa sexual materna
Resume:
O texto apresenta o histórico de uma mãe que cometeu violência sexual contra suas duas filhas. A violência sexual cometida pela mulher ou mãe mostra-se sem conhecimento sistematizado no Brasil. Este texto pretende contribuir para iniciar o debate desta questão no país, oferecendo maior visibilidade para a compreensão deste fenômeno, e trazendo à luz a dinâmica da violência sexual. Trata-se de pesquisa qualitativa, um estudo de caso instrumental de cunho documental, realizada em uma instituição de atendimento em saúde pública. As informações foram obtidas por consulta ao prontuário da pessoa que cometeu a violência sexual: dados gerais e socioeconômicos, a família, a violência cometida, as vítimas, a história de vida. Os resultados foram agrupados em eixos, corroborando literatura: vitimização da ofensora na infância e adolescência; vitimização sexual das filhas; qualidade dos vínculos afetivos; violência interacional; uso de drogas /álcool, e violência conjugal. Estes eixos estão de acordo com estudos internacionais, identificando a vitimização e o sofrimento da mulher que comete violência sexual, e priorizando os estudos de caso. Há necessidade de que os profissionais tenham qualificação específica para a identificação da violência sexual cometida por mulheres e por mães, são muitos os mitos e preconceitos que impedem a identificação desta ocorrência.
Introdução
O tema da violência sexual cometida por mulheres é ainda pouco conhecido e se a violência for perpetrada pela mãe, sabe-se menos ainda ( Cauffman, 2008 ; Kington, 2014; Peter, 2006 ). No Brasil, não há conhecimento sistematizado sobre esse tema. O objetivo desse texto é apresentar e discutir um estudo de caso sobre uma mãe que cometeu violência sexual com o fito de introduzir esse tema na discussão acadêmica. A violência sexual materna tem no estudo de caso um contexto privilegiado para a produção de conhecimento, pois é no espaço clínico, prioritariamente, que esse fenômeno alcança visibilidade (Grattagliano et al., 2012). Vários autores reconhecem que a violência sexual praticada por mulheres ou mães não é conhecida de fato, ou é desqualificada, em função de profissionais ou a sociedade ter dificuldades em enxergar esse tipo de violência (Comartin, Burgess-Proctor, Kubiak, & Kernsmith, 2018; Cortoni, Babchishin, & Rat, 2017; Hayes & Carpenter, 2013; Nicoletti, Giacomozzi, & Cabral, 2017).
Estudos de prevalência sobre essa ocorrên-cia acabam por não conseguirem dimensionar adequadamente o fenômeno, em face de que as questões contidas nos instrumentos de pesquisas não captam as dimensões sutis e secretas dessa violência em particular. Sendo assim, as narrativas contidas em processos clínicos é que, em longo prazo, revelam a violência cometida pela mãe (Conceição, Penso, Costa, Setubal, & Wolff, 2018; Peter, 2006 , 2009). A prevalência da violência sexual cometida por mulheres, na concordância de vários autores ( Cauffman, 2008 ; Cortoni et al., 2017; Gannon & Alleyne, 2013; Goldhill, 2013 ; Strickland, 2008 ; Willis & Levenson, 2016), é desconhecida, porém alguns estudos indicam um índice em torno de 4% da população de ofensores sexuais ( Strickland, 2008 ). Cortoni et al. (2017), em um estudo mais pormenorizado, encontrou que os registros, sobre violência sexual cometida por mulheres, ocorridos no âmbito da polícia, se situam entre 2% e 3% das violência sexuais, em geral. Porém, quando se busca por registros de vítimas de violência sexual perpetradas por mulheres, o número é bem maior, 11%. O quantitativo de mulheres mães que agrediram sexualmente seus filhos tende a ser desconhecido, provavelmente porque a violência sexual materna é muito difícil de ser identificada, por se ocultar no mito intocável da maternidade como algo bom, santo ( Cauffman, 2008 ; Grattagliano et al., 2012; Strickland, 2008 ). Acresce-se a isso preconceitos de gênero, moldando crenças que mapeam o papel da mulher e do homem, em domínios dicotomizados (Zanello, 2018).
Em uma pesquisa não clínica, com 25 homens que foram considerados suspeitos do cometimento de violência sexual, 13 deles sofreram violência sexual de suas mães. As formas de violência sexual adotadas por mães abusadoras são variadas: dar muitos banhos, condutas invasivas como aplicação de clister, humilhação, aplicação de medicamentos pelo ânus, além da manipulação dos genitais. Essas ações de “cuidado” são muito danosas, pois trazem confusão à criança, porque misturam duas informações antagônicas: cuidam e danificam. Outro aspecto que traz dificuldade para o traçado da prevalência da violência sexual materna, é o conhecimento ser obtido em amostra clínica, na maioria das vezes, e desse modo considera-se que há uma subnotificação dessa violência ( Etherington, 1997 ).
Não há, no Brasil, estimativas sobre a violência sexual cometida por mães. O relatório Levantamento Nacional de Informações Penitenciarias Infopen (Departamento Penitenciário Nacional e Ministério da Justiça, 2014a) informa que estão inseridos no sistema prisional 607,731 detentos, no total nacional. Já o Infopen Mulheres (Departamento Penitenciário Nacional e Ministério da Justiça, 2014b) aponta que a população carcerária de mulheres em regime prisional é de 37,380, ou seja, 6.4% da população prisional total. Com relação ao cumprimento de sentença por violência sexual (crimes contra dignidade sexual) (Presidência da República, 2009) cometida por mulheres, o total é de 87 mulheres, sentenciadas por: estupro, atentado violento ao pudor e estupro de vulnerável.
O baixo número de mulheres conhecidas que cometeram violência sexual não é um fenômeno de países nos quais haja maior ou menor violência. Kington (2014) indica que a justiça, de modo geral, é extremamente leniente na avaliação e responsabilização da mulher por este tipo de crime. Os casos de violência sexual cometidos por mulheres são subnotificados e, quando se trata de vítimas jovens do sexo masculino, eles próprios parecem se sentir orgulhosos de participarem de atos sexualizados, e não reconhecem tal situação como violência sexual, por isso tendem a não denunciarem. Essa autora considera que a justiça percebe a mulher que comete violência sexual como menos perigosa e, em consequência, recebe uma pena menor. Um dado agravante é que essa autora de violência sexual também é assim percebida pelas vítimas, ou seja, como uma pessoa boa e amorosa (Kington, 2014).
Com relação à reincidência da violência sexual, o estudo de Sandler e Freeman (2009) mostrou que a reincidência da mulher adulta que comete violência sexual mostra uma taxa mais baixa do que a do homem adulto que comete violência sexual. Os fatores que implicam na reincidência são: se foi ou não a primeira violência sexual, se houve prisão após o cometimento da violência, e quais medidas foram tomadas para responsabilização (Sandler & Freeman, 2009).
Os estudo sobre a mulher que violenta sexualmente e a mãe que comete o mesmo ato es-tão, muitas vezes, intrincados porque compartilham noções comuns. No entanto, há que se fazer algumas distinções, pois se a questão da violência sexual cometida por mulheres é sensível, muito mais a violência sexual cometida pela mãe (Hayes & Carpenter, 2013; Levenson, Willis & Prescott, 2015; Willis & Levenson, 2016). A definição de violência sexual materna é controversa e precisa ser considerada perante questões culturais locais. A violência sexual ocorre quando a criança é usada para satisfação direta do adulto, e quando ela não tem condições de compreender e nem de se esquivar dessas ações ( Etherington, 1997 ). A questão cultural entra como fator delicado a ser considerado, porque muitas vezes a cultura local admite expressões de amor, por exemplo, beijar a genitália do filho, mas que é visto como invasiva e reprovável em outra circunstância. Os discursos construídos sobre violência sexual cometida pela mãe são contraditórios pois envolvem muitos sentidos de calor humano e/ou intimidade que tendem a desqualificar a vio-lência praticada (Hayes & Carpenter, 2013).
O conhecimento da violência sexual perpetrada pela mãe tende a ser visto como raro, isto porque o acervo a respeito desse conhecimento específico tem origem em registros de dados clínicos. Note-se que essa origem não faz parte de estatísticas públicas, e nem de estudos de prevalência (Nicoletti et al., 2017 ). Não há estudo sobre prevalência de violência sexual cometida por mãe, assim como os registros de homens adultos vítimas de violência sexual infantil tendem a ser inexatos porque envolvem preconceitos de gênero, apresentando dados pouco confiáveis (Davies, Gilston, & Rogers, 2012; Peter, 2009 ). Cabe ainda observar que existem modos de interpretação da violência cometida por mulheres, por exemplo violência perpetrada por mulheres adultas docentes, que é vista como experiência positiva na aprendizagem do exercício da sexualidade e da masculinidade, identificando preconceitos de gênero (Kington, 2014; Zack, Lang, & Dirks, 2018).
A revelação da violência sexual cometida pela mãe é obtida através de entrevista clínica, e quando um vínculo de confiança se estabele-ce ( Etherington, 1997 ). As meninas tendem a serem violentadas mais por mulheres que violam sexualmente ou por mulheres que violam sexualmente com parceiros ofensores do sexo masculino, além disso, crianças com menor idade, independente do sexo, tendem a ser mais violentadas por ofensoras mulheres ( Peter, 2009 ).
Método
Trata-se uma pesquisa documental realizada em uma instituição pertencente à rede de saúde, que oferece atendimento às vítimas e autores de violência sexual. Esses atendimentos integram uma parceria com uma universidade federal local para a realização de pesquisas.
A pesquisa é um estudo de caso e análise documental. Optou-se por apresentar um estudo de caso, em função de uma tendência atual à maior compreensão das questões de profundidade e dinâmica das situações que envolvem violência, e violência sexual em particular (Glass, Gajwani, & Turner-Halliday, 2016; Winder, 2017). O método do estudo de caso permite que a informação seja tratada com riqueza de detalhes e profundidade, compondo um quadro compreensivo da situação em questão, que é característico dos estudos médicos e psicológicos. Na pretensão deste texto o estudo de caso se justifica por oferecer subsídio compreensivo a possíveis outras circunstâncias encontradas em ambientes de atendimento psicológico e jurídico a essa população (Berg, 1998). Trata-se de um estudo de caso instrumental (Berg, 1998; Stake, 1994 ) que pode promover um avanço na discussão de tema mantido ainda tão em segredo, como direcionar interesse por adentrar um conhecimento pouco explorado até então. Além disso, Winder (2017) aponta as vantagens da pesquisa qualitativa no tratamento da questão do homem/mulher que cometeu violência sexual, visto que avança na melhor compreensão de como abordar e tratar essa dimensão.
Por outro lado, a opção pela análise documental se deu em face de que o sujeito que ofende sexualmente encontra-se em uma posição vulnerável na admissão da ofensa sexual praticada, desse modo, não aceita qualquer ação que possa reverter em uma possibilidade de comprovação/admissão de responsabilidade pelo ato violento cometido, tal como a assinatura do termo de consentimento ou gravação das informações (Wolff, Oliveira, Marra, & Costa, 2016). Segundo Macedo (2006), os documentos são fontes relativamente estáveis de pesquisa, o que facilita, sobremaneira, o trabalho do pesquisador interessado nos significados comunicados nas práticas humanas. Além disso, a escolha sobre o modo do estudo de caso se dá pela especificidade na qual o conhecimento será construído ( Stake, 1994 ).
Em relação à rotina de atendimento da instituição, a clientela da instituição é composta de autores de violência sexual do sexo masculino e feminino, encaminhados pelo sistema de justiça, que compõe a proteção de crianças e adolescentes e a responsabilização dos autores. As pessoas atendidas, ao ingressarem no programa, passam por entrevista individual, familiar/conjugal e psiquiátrica, em um total de cinco. Após essa fase inicial de avaliação, são tomadas as decisões sobre encaminhamentos para atendimento psicossocial individual ou grupal. Até o momento, todas as autoras de violência sexual têm sido encaminhadas para atendimento individual e também para atendimento ginecológico. Desse modo, têm-se as informações registradas no prontuário de cada participante o qual é o único documento fornecedor das informações.
Ressalta-se a condição de interface dos atendimentos oferecidos aos autores e autoras de violência sexual contra crianças e adolescentes. Esta interface se concretiza na presença de diferentes saberes da psicologia, do Serviço Social e do Direito, buscando uma convergência de decisões que tanto protejam as vítimas, como responsabilizem os autores (Branco & Almeida, 2012; McKeown, 2010 ). Além disso, o Plano nacional de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, 2013) faz a indicação precisa da inclusão da dimensão complexa da violência, e a necessidade de construção dessa interface. Por esse motivo, incluiu-se o item sobre o histórico da notificação e consequente denúncia.
A denúncia
Mulher Gato (MG) tem idade entre 25 e 30 anos, é casada com um homem de idade aproximada a sua, e possui duas filhas com idades entre cinco e dez anos, e a família mora na periferia de uma grande cidade. Houve na comunidade um evento voltado para o combate da violência contra mulheres e crianças e, passado o evento, a filha mais velha procurou uma profissional responsável pela organização do evento, e informou que a mãe a abusava sexualmente, tocando sua genitália e a da irmã, e pedindo que elas fizessem o mesmo com ela. Esta situação ocorria durante a noite, enquanto as meninas estavam dormindo, quando a mãe se dirigia à cama na qual elas estavam. A pessoa, para quem a menina revelou a violência sexual, acionou o Conselho Tutelar que levou o caso para a delegacia especializada, onde a menina foi ouvida imediatamente, e a família convocada. Nessa ocasião, a menina relatou que já havia revelado a um adulto da casa esse acontecimento (isso se deu um ano antes), mas como não houve mudança, ela resolveu contar para a pessoa do evento.
Seguiram-se várias entrevistas nas esferas social e jurídica: no Centro de Referência em Assistência Social, no Ministério Público (MP), e na Vara de Infância e Juventude. Nos contextos da assistência social, a mãe e o pai admitiram a violência, justificando que MG era a mãe, por isso não havia problema. Porém, nos contextos da esfera jurídica, houve a negação do acontecido, justificando que a menina havia inventado tudo. Houve a decretação de medida de afastamento do lar da MG, o que de fato aconteceu. No entanto, após estudo psicossocial na esfera jurídica, houve suspensão dessa medida. Finalmente o caso foi encaminhado, pelo MP, para atendimento compulsório às crianças e à mãe, em duas instituições públicas. Algumas informações estão mascaradas e /ou incompletas, desde a instituição até os participantes, no intuito de preservar o anonimato das pessoas envolvidas.
A participante
Atualidade. MG mora com a família em região de periferia, não executa atividade laboral fora de casa, possui uma condição socioeconômica que a situa na faixa D com relação à renda familiar.
Trajetória de vida. Por volta dos 13 anos, MG iniciou uma série de conflitos interacionais com a família nuclear, fazendo com que fugis-se de casa e ficasse por um tempo dormindo na rua. Nesse período, bebia muito “para fazer mal aos pais”. Houve dois episódios de estupro: um aos 13 anos perpetrado por um homem bem mais velho, e outro aos nove anos de idade por um vizinho adulto. Há ainda um relato de tentativa de possível agressão fatal que permanece um pouco obscuro, mas que MG fez questão de relatar para mostrar a intensidade dos conflitos vividos em casa.
Família de origem. MG é a filha mais velha de uma prole de quatro, seus pais ainda vivem junto, porém com muitos conflitos e brigas. O pai trabalha na construção civil e a mãe em serviços gerais. Ela mantém uma relação mais fácil com o pai, e muito difícil com a mãe. Esse grupo de pessoas (família nuclear e extensa) mora em habitações muito próximas. O marido provém de uma família numerosa, na qual houve um aborto e um assassinato de um dos filhos. Os pais são separados.
Conjugalidade. A relação da MG com o marido é marcada por brigas e agressões físicas. Eles participam de situações que envolvem relações sexuais com vários parceiros, individualmente ou grupal, de ambos os sexos.
Relação com as filhas. MG apresenta rejeição bem evidente em relação à filha mais velha (quem tomou a iniciativa de denunciar), e admite que isso ocorreu desde bebê, pois ela ficou grávida sem querer, e nessa ocasião o marido (namorado então) a abandonou. A mãe de MG fez o mesmo, e o pai foi o único que lhe deu apoio. MG considera que filha mesmo é a menina mais nova, além disso, culpa a filha (que denunciou) por tudo que está passando, principalmente a vergonha, a perda de confiança nas filhas. MG acha que a filha ainda vai se “arrepender do que fez”, voltar atrás, e esclarecer que foi mentira ou inventado.
Entrevista psiquiátrica. MG apresentou-se, nesse momento, extremamente sedutora, com requintes de roupa e maquiagem, admitiu a violência praticada, dizendo que ela só queria receber prazer, e que a filha a traiu. A avalição não confirmou presença de traços psicóticos, ficando a impressão diagnóstica de um possível transtorno de personalidade, a ser acompanhado com maior observação.
Relação com membros da equipe de aten-dimento. MG apresenta-se agressiva, desafiante, com postura física de enfrentamento, verbalizações grosseiras e não colaborativa, em uma posição bastante diferente da postura na entrevista com o psiquiatra.
Instrumentos e procedimentos. Com relação ao material desse estudo de caso, a consulta foi realizada no prontuário já mencionado que reúne os seguintes registros: entrevista de acolhimento, a linha de vida, entrevista familiar, genograma, entrevista psiquiátrica, relatório do MP sobre a vítima e a vitimização. A entrevista de acolhimento abrange as seguintes informações: dados pessoais e socioeconômicos, dados da família, condições de moradia e de saúde, histórico da violência sexual tanto a cometida quanto a sofrida. A construção da linha da vida busca conhecer os eventos durante a trajetória de vida, a conexão entre esses eventos, e a participação de pessoas da família e não familiares nesses eventos (Nascimento, Rocha, & Hayes, 2005).
Todos os familiares são convidados a participarem da entrevista familiar, e o objetivo é conhecer a interação familiar, a organização familiar que propiciou a ocorrência da violência, a reação e o posicionamento dos familiares frente ao conhecimento da violência. Durante essa entrevista, o genograma é confeccionado (McGoldrick, Gerson, & Petry, 2012). Esse instrumento consiste em uma representação gráfica dos membros da família de suas várias gerações, e da qualidade dessas relações entres os diferentes membros. Em relação à mãe que violenta sexualmente é interessante, em particular, a repetição da vitimização sexual em cada geração. A entrevista de avaliação psiquiátrica é fundamental para acrescentar, à compreensão do contexto socioeconômico e cultural do adulto ofensor, o seu comprometimento com a presença de aspectos psicopatológicos, por exemplo, psicopatias ou depressão (Glass et al., 2016 ; Winder, 2017).
Análise das informações. Os pesquisadores fizeram uma leitura exaustiva dos documentos constantes do prontuário visando recolher os dados referentes ao que a literatura aponta como aspectos fundamentais da gênese da violência sexual cometida por mulheres adultas: maus tratos na infância e adolescência e vitimização por violência sexual (Willis & Levenson, 2016), isolamento social, rompimento de vínculos afetivos (Levenson et al., 2015 ), violência familiar, uso de drogas/álcool ( Strickland, 2008 ). Esta leitura exaustiva se constitui na primeira fase da análise temática proposta por Minayo (1993). Em seguida são apreendidos os sentidos comuns que orientam e organizam o objetivo a ser analisado (segunda fase). Por sua vez, os sentidos levam à construção dos eixos de análise (terceira fase) compondo a identificação de temas precípuos sobre o fenômeno analisado. A análise temática é uma análise de conteúdo valorizando a “dimensão qualitativa” em direção aos aspectos acima apontados” (Minayo, 1993, p. 209).
Cuidados éticos. O projeto foi submetido a um Comitê de Ética, via Plataforma Brasil, e recebeu parecer favorável datado de 19/02/2015.
Resultados e discussão
A leitura do conteúdo registrado no prontuário proporcionou uma organização das informações no sentido de responder aos quesitos apontados por Strickland (2008 ): Vitimização na infância e adolescência, vitimização sexual, qualidade dos vínculos afetivos, uso de drogas/álcool. A esses itens, acresceu-se a violência conjugal, outro item importante pois são muitos os casos de mulheres que violentam crianças com seus parceiros habituais ou não (Gillespie et al., 2015; Grattagliano et al., 2012; Wijkman, Bijleveld, & Hendriks, 2014). Esses aspectos são amplamente apontados como conteúdo principal a ser observado em qualquer estudo de caso de mulher que cometeu violência sexual (Comartin et al., 2018 ).
Os maus tratos sofridos/a vitimização na infância e adolescência de MG
De modo geral, a vivência de violência física/sexual/emocional na infância e na juventude, em relação aos ofensores sexuais adultos do sexo masculino, é constatada como extre-mamente presente no desenvolvimento desses sujeitos (Williams, Gillespie, Elliot, & Eldridge, 2017). O mesmo ocorre com os adolescentes do sexo masculino que cometem violência sexual (Rodgers & McGuire, 2012). Em especial, as mulheres que violentam sexualmente, sejam adultas ou adolescentes, são referenciadas como tendo vivido experiências muito violentas na infância e na adolescência, muitas vezes com maior poder destrutivo do que os ofensores do sexo masculino (Levenson et al., 2015 ; Rodgers & McGuire, 2012). Na comparação com mulheres ofensoras não sexuais, as mulheres ofensoras sexuais tiveram experiências de maltrato na infância com maior intensidade ( Strickland, 2008 ; Wijkman et al., 2014). Essa condição reverte em maior violência contra suas vítimas, muitas vezes em função de uma expectativa de gênero, construindo uma atuação social com traços de masculinidade e expressão de poder ( Cauffman, 2008 ). Muitas vezes, o cometimento da violência sexual por uma mulher, com a presença de um parceiro, estrutura essa dinâmica (Comartin et al., 2018 ; Gannon & Alleyne, 2013; Grattagliano et al., 2012; Peter, 2009 ).
O relato de MG sobre sua infância e em especial sobre sua vinculação com a figura da mãe contém muitos aspectos de violência interpessoal, sendo que, o tempo todo, ela se refere ao bom relacionamento com o pai que foi a única figura que a apoiou. O relato de que houve uma tentativa de possível agressão fatal em relação a uma pessoa da família nuclear, em princípio pareceu pouco verossímel, porém, segue sendo um aspecto para melhor investigação, já que o conhecimento dos detalhes desse evento depende do estabelecimento de um vínculo de confiança entre ela e a pessoa responsável pelo atendimento. Afinal, é preciso resgatar que MG afirma diferentes verdades conforme o contato para o qual está informando. Esse é um ponto muito sensível para a continuidade do atendimento. O acompanhamento clínico ou psicossocial requer um estabelecimento de relação recíproca de confiança e criação de um ambiente não confrontacional (Willis & Levenson, 2016).
Nos momentos de contato com os vários profissionais do sistema justiça e do sistema de assistência, ficou evidente sua compreensão de que cada um desses sistemas pode apresentar consequências diversas em relação ao informado, podendo ou não se comprometer mais ou menos. Trata-se de outro ponto de importância fundamental, pois admitir responsabilidade no ato violento, perante principalmente o sistema justiça, significa se colocar de forma mais vulnerável a ser penalizada (Meneses, Stroher, Setubal, Wolff, & Costa, 2016).
Não há dúvidas sobre suas vivências de violência física, psicológica, emocional e sexual. Foram duas situações de estupro a partir dos nove anos de idade, acrescidas de rompimento de vínculos com a mãe e o pai, em consequência de sua saída de casa, seguida da experiência de sobrevivência na rua, onde disse ter sido bastante maltratada. Willis e Levenson (2016) explicam que, para essas mulheres, o maltrato infantil demasiado participa de uma equação maligna e muito danosa na ausência de fatores de proteção tais como outras figuras protetivas, ambiente acolhedor, família extensa calorosa. Por isso, a relação preferencial com essa mulher deve ser mediada por genuína empatia ( Goldhill, 2013 ; Willis & Levenson, 2016).
Faz-se necessário recuperar a ação violenta de MG sobre suas filhas, pois o caso trata primeiramente de uma mãe que cometeu violência sexual. As reações da sociedade frente a esta ação estão sendo atualmente clareadas no sentido de enfocarem porque esse tema permanece obscuro e em segredo (Hayes & Carpenter, 2013; Peter, 2006 ). Peter (2006 ) observa que há uma tendência em organizar o comportamento da mãe que comete violência sexual por categorias. Uma primeira categoria é determinada por seu passado de vitimização, então essa mulher é uma vítima. Uma segunda categoria é determinada pela sua condição de vítima de um companheiro que exerce coerção sobre sua conduta, então ela é uma coitada. Assim, Peter (2006 ) estabelece uma crítica so-bre essa compreensão, porque parece ser necessário vê-la sempre como vítima. Se ela não for vítima então ela será uma pessoa má, visto que a sociedade apresenta muita dificuldade de enxergar uma conduta abusiva em um papel tão bom e intocável como é o da mãe ( Peter, 2006 ). A partir dessa referência, pode-se inferir que MG ficou muito zangada com a revelação da filha que a alçou ao patamar de má mãe, pois ela se sentiu traída pela filha. Por outro lado, quando houve um estudo no âmbito da justiça que resultou em um cancelamento de uma medida protetiva anteriormente exarada pelo juiz da infância, pode-se inferir também que, além da negação da violência sexual por parte dos agentes jurídicos, houve uma possível compreensão da equipe de que a mãe não era má (uma das categorias propostas por Peter, 2006 ). Tanto Peter (2006 ) quando Hayes e Carpenter (2013) concordam que é insuportável para a sociedade a constatação de que uma conduta sagrada foi profanada. A saída para esse impasse pode ser a construção de uma hipótese de que, então, se trata de um problema de saúde mental ( Cauffman, 2008 ), saída muito utilizada pela sociedade e por equipes profissionais, mas que não beneficiam um justo encaminhamento para a proteção da vítima nem para o atendimento da mulher ofensora sexual. Hayes e Carpenter (2013) falam em um moralismo social trazendo prejuízos de avaliação justa e adequada da situação.
Vitimização sexual das filhas
O conhecimento da violência sexual cometida pelas mães se consolidou a partir de dados clínicos de atendimentos de adultos do sexo masculino, que revelaram a violência sofrida muito depois do término da infância ( Strickland, 2008 ). Grattagliano et al. (2012) discute que muito pouco se sabe sobre essa realidade. No entanto, hoje já se tem conhecimento de mais meninos sofrerem violência sexual praticada por mulher, do que praticada por homem, isso em função de as mulheres se encontrarem mais em posição de cuidar de meninos, do que os homens. Está-se agregando este item, em especial, em função da importância que há em se enfatizar as vítimas. Dada a pouca exposição dessa violência, é necessário que qualquer estudo priorize as filhas, ainda mais que este caso apresentou muitas decisões dúbias e contraditórias por parte da justiça, tornando a efetiva proteção das crianças uma dúvida permanente.
A discussão do item anterior —a própria vitimização da mulher que cometeu violência sexual contra suas filhas— esta intrinsecamente ligada aos comentários ao se enfocar agora as filhas. MG desqualificou a violência praticada em virtude de nominar o acontecido como “somente tocar”. As violências sofridas por MG, de acordo com Willis e Levenson (2016), Comartin et al. (2018) e Wijkman et al. (2014), delineiam uma afetividade empobrecida e pouca habilidade no exercício da intimidade. Pode-se pensar que tocar signifique aproximar, estar junto, principalmente da filha mais velha (vítima que revelou), indicada como rejeitada pela própria mãe. A inadequação no trato social constitui-se uma característica (Willis & Levenson, 2016; Wijkman et al., 2014).
O estudo da reincidência da violência sexual cometida por mulheres é bastante diverso dos homens adultos ofensores sexuais. As taxas de recidiva da violência sexual de mulheres são, em geral, mais baixas do que as dos homens. Essas taxas dependem das ações tomadas após a revelação da violência, tais como medidas de responsabilização, encarceramento e medidas de proteção às vítimas (Sandler & Freeman, 2009). Já as taxas de recidiva da violência sexual cometida pelas mães são desconhecidas e provavelmente altas, pois os estudos clínicos com adultos vítimas de violência sexual por suas mães indicam que a violência foi cometida por longo período, já que o homem, sim, é visto como um possível agressor, e a mulher considerada como doadora de segurança e cuidados ( Etherington, 1997 ; Peter, 2006 ). O relato da vítima foi bastante objetivo ao identificar o comportamento da mãe: pedir às duas filhas que a tocassem na genitália, assim como as duas meninas deixarem que a mãe as tocassem. Não houve relato de outras agressões, mas a filha revelou que ambas as irmãs não queriam participar desses eventos.
Cauffman (2008 ) aponta três grupos de mu-lheres que cometem violência sexual com base no cometimento maior ou menor da violência: ofensoras sexuais com baixo índice de violência; ofensoras sexuais delinquentes; e ofensoras sexuais com alto índice de violência. Na intenção de manter a violência sexual por mais tempo, as ofensoras podem utilizar de estratégias de dominação. Na situação desse estudo de caso, há um agravante de que a filha mais velha já teria conversado com um adulto da família sobre a violência. Esse adulto não tomou providências no sentido de interromper a violência. Desse modo, pode-se considerá-lo um parceiro indireto, já que esse adulto não se constituía em um coparticipante do momento da violência. Esse aspecto é importante porque a mulher quer comete violência sexual atua de modo isolado, e a mãe ofensora sexual também. A não ser que ela tenha como seu parceiro da violência sexual, o próprio parceiro sexual ( Peter, 2006 ).
A vítima estava, no momento da revelação para a pessoa do evento, com nove anos, sendo que sua tentativa, de revelar para um adulto da casa o que ocorria, foi realizada um ano antes, isto é, com oito anos. A pesquisa de Peter (2006 ), com oito mulheres vítimas de abuso sexual cometido pelas mães, mostrou que as violências sexuais tiveram início por volta dos seis anos das vítimas até os 13 anos. Esse dado coincide com o período no qual a filha mais velha revelou a ocorrência do abuso sexual.
A violência sexual cometida por uma única ofensora, ou por uma dupla de ofensoras, ou por uma ofensora e seu parceiro sexual, permanece desconhecido ou pobremente conhecido (Gillespie et al., 2015; Grattagliano et al., 2012). A co ofensa sexual, praticada pela mãe ou não, depende mais das circunstâncias e da possibilidade do parceiro sexual ser também um ofensor sexual. Uma variável importante é o pertencimento a um grupo de pares com atividades suspeitas, e outro aspecto que deve ser observado é se essa mulher sofre algum tipo de pressão para ofender sexualmente (Gillespie, et al., 2015; Comartin et al., 2018). Nesse ponto, retoma-se a informação de que o pai e a mãe participam de encontros de sexo grupal, além de terem parceiros sexuais em separado, e com conhecimento mútuo dessa opção. Até o momento não se tem outras informações sobre esse grupo, sendo que a implicação desse fato com a violência sexual da filha ainda permanece necessitando de compreensão. No entanto, Grattagliano et al. (2012) apontam que essas combinações de coautoria da violência sexual estão ligadas a uma família fechada em sua interação, presença de conflitos conjugais e insatisfação sexual, ou mesmo de ausência de vida sexual. Recorde-se que MG informou que existem muitos conflitos entre o casal e já houve violência física por parte dele no início do relacionamento.
Rompimento de vínculos/Isolamento social/Uso de álcool e drogas
Trata-se de uma concordância entre vários autores ( Cauffman, 2008 ; Etherington, 1997 ; Gillespie et al., 2015; Peter, 2009 ) que a mulher que comete violência sexual foi uma criança e/ou jovem vitimizada anteriormente em seu desenvolvimento, tendo vivenciado pobres vinculações afetivas, e histórico de rompimento de vínculos. Na verdade, essa condição leva a outra discussão sobre a polivitimização, que é a presença de várias vitimizações de origens e conotações diferentes coexistentes ao longo do desenvolvimento da criança e do jovem (Turner, Shattuck, Finkelhor, & Hamby, 2016). A polivitimização leva a uma situação de estresse permanente, afetando relações afetivas e soci-ais, que podem estar ligadas às violências sexu-ais. MG apresenta, em sua trajetória de vida, vários episódios de rompimento de vínculos afetivos, de condição de isolamento e abandono (Turner et al., 2016 ).
Estas observações sobre a qualidade dos vínculos afetivos com as figuras parentais estão relacionadas à maior presença de traços de vulnerabilidade pessoal em sua saúde mental, e para uso de drogas (Gillespie et al., 2015). No estudo de caso de MG, o aspecto uso excessivo de álcool ou drogas não apresenta relevância, pois não aparecem comportamentos com esse teor. No entanto, não se pode menosprezar o conteúdo registrado de que MG contou ter contratado uma pessoa (tudo muito inespecífico) para perpetrar uma possível agressão fatal de uma pessoa da família nuclear, e que isto não se concretizou por acaso.
O tema de pessoas que são assassinadas por mulheres que cometem violência sexual é bastante desconhecido. Chan e Frei (2013) indicam que se pode encontrar uma questão básica de gênero, tratando-se de uma situação com diferença de poder entre a vítima e a mulher assassina, e o assassinato pode ser visto como uma estratégia para diminuir essa diferença. MG tem sido pouco detalhista em suas falas, mas depreende-se que essa tentativa de eliminação de uma pessoa se deve à vivência de eventos que a fizeram ter muita raiva, ao mesmo tempo em que reconheceu sua condição de submissa ou sem poder para enfrentá-la. Essa condição, diferença de poder, é o que Chan e Frei (2013) apontam sobremaneira como uma das causas de agressões fatais.
Violência conjugal
Incluiu-se o item violência conjugal nesta análise por se tratar de um aspecto considerado pela equipe como fundamental para a compreensão e interrupção da violência, pois, apesar do marido de MG não ser um abusador sexual, nem parceiro da violência sexual, existem muitas dependências dela em relação a ele. Necessário anotar que essa afirmação de que o marido não participa das violências sexuais apoia-se na declaração que a vítima fez na ocasião da revelação. Outra razão se deve às referências de Strickland (2008 ), de que as abusadoras sexuais apresentam organização familiar com interações que não oferecem suporte, em situações de crise, como é o que se observou a partir do momento em que a revelação da violência aconteceu. Além disso, observou-se que, permanecem na relação com o marido, os mesmos conflitos que se apresentavam antes em relação à mãe: inadequação social e isolamento social, dificuldades de estabelecer vínculos amorosos, violência física, emocional e sexual. Estes são aspectos apontados por Strickland (2008 ), Willis e Levenson (2016) e Wijkman et al. (2014)Wijkman como preponderantes na vivência infantil para a eclosão da violência sexual posterior.
MG apresenta uma condição de submissão econômica em relação ao marido, indicou que tem uma relação de lealdade com ele, pois entende que ela saiu da rua com a participação dele. Sobre as agressões infringidas por ele, mostra-se ambivalente. Nas entrevistas nas quais ele esteve presente, ela se manteve calada, não contestando as informações de bom trato que ele faz questão de dar aos profissio-nais. No entanto, as acusações de maltrato por parte dele surgiram durante os momentos das entrevistas em que ele não estava presente. Um exemplo importante: coube a ele qualificar o relacionamento conjugal como bom, normal. Essas indicações levam a uma percepção de que sua submissão vai além da econômica.
Kington (2014) estabelece três categorias de ofensoras sexuais: a que explora sexualmente estudantes, a que explora sexualmente crianças junto com seu parceiro sexual, e a que explora sexualmente a crianças das quais ela cuida. Essa última categoria parece ser a que mais identifica MG, pois não há nenhuma indicação de que o marido participe da violência sexual. Com ou sem o uso de outro tipo de violência, a violência sexual segue sendo uma violência, e o marido tinha conhecimento disso, mas não atuou efetivamente para a sua interrupção, nem procurou alguma instituição para recebimento de orientação. Pelo contrário, o casal manteve, pelo menos por um ano, uma solução estratégica de se calarem e buscarem uma solução não resolutiva para “manter tudo em família” (Kington, 2014). Ainda há que se comentar sobre a informação de que o casal mantém jogos sexuais com outros casais e outros indivíduos, e isto ocorre de comum acordo. Nicoletti et al. (2017) a respeito de estudo de dois casos de mães que perpetraram violência sexual contra suas filhas, comenta a presença desta situação nos dois casos. A observação desta semelhança é interessante, mas carece de outras considerações, pois como apontaram Hayes e Carpenter (2013) a preocupação com discursos moralistas e de censura encontram-se ao redor das situações de violência sexual perpetrada por mulheres.
Considerações finais
As informações discutidas neste estudo de caso corroboram conhecimento oferecido na literatura internacional ( Cauffman, 2008 ; Comartin et al., 2018; Levenson et al., 2015; Strickland, 2008 ; Willis & Levenson, 2016). Outrossim, aponta para coincidências em um estudo de caso realizado no Brasil: Nicoletti et al. (2017). Observou-se uma série de discrepâncias entre as narrativas das vítimas, da mãe que cometeu violência sexual e do marido, principalmente com mudanças na admissão da responsabilidade conforme o contexto para o qual se estava oferecendo as informações. No entanto, pode-se constatar um aspecto importante, a vitimização física e sexual, bem como o intenso sofrimento vivido pela participante quando criança, e que está intimamente relacionada à posterior perpetração da violência contra suas filhas.
Acredita-se que o conteúdo desenvolvido neste texto pode apresentar contribuições consistentes para a construção da história clínica da mulher que ofende sexualmente os filhos. Desse modo, as contribuições podem ser estendidas para as histórias clínicas das crianças e /ou adolescentes abusadas sexualmente por suas mães ( Haliburn, 2017 ). Em especial, esta temática desenvolvida sob o aspecto do estudo de caso segue em tendência atual (Grattagliano et al., 2012; Winder, 2017), além de conter uma discussão ainda rara nos países da América Latina, particularmente no Brasil.
Buscou-se, a partir desse estudo de caso, chamar a atenção para o cuidado necessário que os profissionais precisam ter na identificação da violência sexual cometida pela mãe ( Goldhill, 2013 ; Williams et al., 2017), pois essa tarefa pode sofrer limitações em função da expectativa social do exercício do papel mater-no que é qualificado culturalmente como bom. Os profissionais que atendem essas mulheres precisam superar possíveis preconceitos de modo a enxergar o sofrimento da mulher vitimizadora, e também oferecer um contexto de empatia e estabelecimento de relação de confiança, sob pena de não se conseguir ter uma compreensão adequada da situação, e nem se proporcionar oportunidade para atendimento clínico (Willis & Levenson, 2016).
Constata-se que a limitação desse texto se encontra na falta de autores brasileiros para empreender uma discussão mais contextualizada. Por outro lado, o fato de que a base da exposição foi sobre registros contidos no prontuário pode ser considerado outro ponto. No entanto, como foi apontado na história de MG, esse sujeito encontra-se em uma posição bastante delicada, pois sabe que suas informações podem ser vistas como admissão de culpa, mesmo que o contexto não seja mais o jurídico. Nesse sentido, retoma-se a primeira parte do título “Não pode ser abuso... eu sou a mãe”, que indica mito e preconceito em relação a esse tema, evidenciando o quanto a função materna tem uma conotação santificada, dificultando a revelação e a notificação da violência sexual cometida pela mãe.
Resume:
Introdução
Método
A denúncia
A participante
Resultados e discussão
Os maus tratos sofridos/a vitimização na infância e adolescência de MG
Vitimização sexual das filhas
Rompimento de vínculos/Isolamento social/Uso de álcool e drogas
Violência conjugal
Considerações finais